Quando o Natal tem sotaque português (e toda a família junto)
Este ano, algo raro aconteceu: toda minha família está em Portugal para o Natal.
Meus pais, meu irmão, minhas sobrinhas, eu e meu marido — o Tio Afonso, português de nascença — finalmente reunidos para viver aquilo que ele mais sente falta no Brasil: o Natal no frio.
Não é só o frio, claro. É o cheiro de bacalhau assando no forno a lenha da mamãe portuga, que a todos abraça. É a mesa estendida sem pressa. É o vinho que não vem de garrafa qualquer, mas de escolha consciente. É a tradição que não se aprendeu em livro, mas que se respira ao crescer nesta terra.
Para minhas sobrinhas — que conheciam Natal como rabanada, chester,carneiro assado, salpicão, farofa e calor de 35°C —, será a primeira vez sentindo o que é celebrar com regionalidade autêntica.
Nada de misturança. Nada de fusion mal resolvido. Só o que há de melhor e mais verdadeiro em Portugal à mesa.
E, no centro de tudo: o bacalhau.
A regra que os portugueses não perdoam (e que eu ousei quebrar)
Se você já esteve em Portugal e pediu vinho branco para acompanhar bacalhau, sabe do que estou falando.
Um silêncio imediato. Um olhar de estranhamento. Às vezes até um comentário direto: “Vinho branco com bacalhau?”
Porque aqui, a tradição manda: bacalhau pede vinho tinto.
E não é só costume. Há lógica: bacalhau é peixe, sim, mas é intenso, untuoso, salino, escamoso. Tem corpo. Tem personalidade. E por isso, dizem, merece vinho com estrutura — ou seja, tinto.
Eu mesma segui essa regra por anos. Casei com português, morei aqui, bebi tinto com bacalhau em dezenas de ceias.
Até o dia em que ousei perguntar: “E se não for a única forma?”
O dia em que provei bacalhau no forno com batatas ao murro e tudo mudou
Foi numa ceia simples, dessas sem pompa mas com alma.
Bacalhau no forno, batatas ao murro (aquelas amassadas, assadas até ficarem douradas por fora e macias por dentro), azeite generoso, alho que perfuma a casa inteira.
Alguém trouxe um espumante de longa guarda. Vinho complexo, intenso, com autólise marcada (aquele aroma de panadaria, fermento, brioche que vem do tempo nas borras).
Provei.
E algo clicou.
A salinidade do bacalhau conversou com a mineralidade do espumante.
A untuosidade do peixe foi cortada pela acidez vibrante das bolhas.
A intensidade do prato encontrou intensidade no vinho — mas sem o peso do tanino.
Não era “vinho branco com peixe” (regra clichê).
Era equilíbrio de elementos.
A partir daí, passei a explorar: espumantes, brancos intensos do Douro, vinhos com guarda, complexidade, estrutura.
E descobri que regionalidade não é camisa de força. É ponto de partida.
Por que bacalhau com tinto funciona (e quando não funciona)
Deixa eu ser clara: bacalhau com tinto português é delicioso. Funciona. Tem tradição por trás.
Mas nem sempre é a melhor escolha. Depende de:
Bacalhau à Brás
Preparação com batata palha, cebola, ovos. Rico, cremoso, com boa presença de gordura.
Harmonização: Tinto de corpo médio funciona bem aqui. A cremosidade do ovo pede estrutura, e o tanino equilibra a gordura.
Bacalhau no forno com batatas ao murro
Salino, crocante, generosamente regado com azeite. Sabor direto, textura marcante.
Harmonização: Branco intenso do Douro ou espumante de guarda equilibram melhor. A acidez corta a gordura, a mineralidade dialoga com o sal.
Bacalhau com natas
Cremoso, rico, coberto de queijo gratinado. Prato robusto e envolvente.
Harmonização: Branco encorpado (Chardonnay com barrica, por exemplo) ou tinto leve com taninos suaves. O queijo pode brigar com taninos verdes.
Por trás do “combina ou não combina”, o que existe são elementos em diálogo. Quando você aprende a enxergar isso, harmonizar deixa de ser regra e vira linguagem.
Qual tinto escolher (se for escolher tinto)
Se optar por tinto, cuidado com o tanino.
Tanino + salinidade do bacalhau pode gerar amargor residual desagradável. Isso acontece porque a salinidade acentua a adstringência dos taninos, especialmente se forem taninos verdes (jovens, agressivos).
(Isso está detalhado no meu e-book “Em Busca da Harmonização Perfeita”: tanino + queijo ou peixe salgado = conflito sensorial.)
Solução: Escolha tintos com taninos macios:
- Vinhos amadurecidos (5+ anos de garrafa)
- Uvas naturalmente mais suaves (Touriga Franca, Tinta Roriz bem trabalhada)
- Douro Reserva, Dão envelhecido
Evite: Tintos jovens tânicos, especialmente se o bacalhau tiver queijo ou muita salinidade.
Os vinhos que testei com bacalhau (e o que aconteceu)
Ao longo dos anos, provei dezenas de combinações. Aqui estão as que mais me marcaram:
Espumante de longa guarda (método tradicional, 24+ meses)
Exemplos: Espumante Cava (de Espanha), aqui no Brasil do Sul do país, em Portugal da Bairrada ou até Champagne Francês.
O que acontece: Acidez corta gordura. Autólise (aroma de pão, fermento) dialoga com bacalhau gratinado. Bolhas limpam o paladar a cada gole.
Melhor com: Bacalhau no forno, bacalhau com natas
Branco intenso do Douro (com ou sem barrica)
Exemplos: Vinhas Velhas, blends de Rabigato + Viosinho + Gouveio
O que acontece: Corpo do vinho equilibra corpo do prato. Mineralidade + salinidade = sinergia perfeita.
Melhor com: Bacalhau assado, batatas ao murro, azeite generoso
Tinto amadurecido de taninos suaves
Exemplos: Douro Reserva com 5+ anos, Dão envelhecido
O que acontece: Taninos redondos não brigam. Especiarias do vinho (louro, pimenta) complementam o tempero do prato.
Melhor com: Bacalhau à Brás, bacalhau à Gomes de Sá
O que evitar: Tinto jovem tânico
O que acontece: Amargor residual. Salinidade do bacalhau acentua adstringência dos taninos.
Evitar com: Qualquer preparação muito salgada ou com queijo
O que você realmente quer sentir
No fim, harmonização não é matemática. É intuição informada.
Pergunte-se:
- Quer peso, estrutura, conforto? Tinto.
- Quer frescor, leveza, contraste? Branco ou espumante.
- Quer surpreender (a si mesmo ou aos convidados)? Ouse.
A melhor harmonização é aquela que faz você querer repetir — o prato e a taça.
A receita que vou fazer no Natal (e o vinho que vou servir)
Este ano, na ceia com toda minha família, vou preparar…
Mentira. Vou observar minha sogra preparar.
Porque no Norte de Portugal, bacalhau de Natal não é sobre técnica elaborada. É sobre respeito ao produto e à simplicidade.
A receita é tão direta que assusta quem está acostumado com receitas cheias de passos: bacalhau cozido, legumes da estação, azeite generoso. Pronto.
Mas essa simplicidade não é pobreza. É sabedoria.
BACALHAU COZIDO À MODA DO NORTE (Consoada)
A tradição da Consoada — ceia de 24 de dezembro — no Norte de Portugal é essa: menos é mais, desde que seja o melhor.
Ingredientes:
- Bacalhau demolhado (postas grossas e bem escolhidas)
- Batatas médias (inteiras, com casca)
- Couve portuguesa (ou galega, ou coração — o que estiver bom na época)
- Cenouras
- Ovos (inteiros, com casca)
- Azeite português (o melhor que você tiver)
Modo de fazer:
- Cozinhe tudo junto numa panela grande com água: bacalhau, batatas, cenouras, ovos (sim, tudo na mesma água).
- A couve vai por último — entra quando o bacalhau já está quase pronto, apenas para amolecer sem perder a textura.
- Escorra tudo. Arrume numa travessa: bacalhau ao centro, legumes ao redor, ovos cortados ao meio.
- Regue generosamente com azeite. E quando digo generosamente, é generosamente mesmo — “à portuguesa”, como diz minha sogra.
- Sirva. Sem molho, sem guarnição elaborada, sem nada que tire o protagonismo do bacalhau e do azeite.
A filosofia por trás:
No Norte de Portugal, a Consoada é sobre contenção e qualidade.
Não é ceia de ostentação. É ceia de presença.
Você não precisa de 15 pratos na mesa. Precisa de um prato bem-feito, ingredientes de verdade, e tempo para sentir.
O bacalhau é bom? As batatas vieram da terra? O azeite é daqueles que você sente o verde-oliva na primeira inspiração? Então você tem tudo.
Menos é mais — desde que seja o melhor.
Os vinhos que vou servir:
Para essa simplicidade potente, vou servir:
Opção 1 (minha escolha): Vinho Verde branco, com algum tempo de guarda (acredite, esse é um nivel mais “plus” de Vinho Verde — sim, branco com bacalhau. A acidez vibrante, o frescor mineral, a leveza que não compete com o prato, mas realça a salinidade do bacalhau e o verde da couve.
Opção 2 (para os tradicionais): Douro ou Dão tinto Reserva 2018 — taninos já suavizados, especiarias que conversam com o azeite generoso, corpo que equilibra sem pesar.
Tá bom, a sogra sempre pede um Alentejano, por isso é uma garrafa só para ela, quem cozinha merece não é mesmo?!
Vou colocar as garrafas na mesa. E deixar cada um descobrir sua verdade.
Porque a graça da ceia não é impor. É convidar.
O que aprendi harmonizando bacalhau (e o que isso ensina sobre vinho)
Depois de anos testando, entendi algo que vai muito além do bacalhau:
Regras de harmonização são pontos de partida, não destinos.
- Harmonização por cor (branco com peixe, tinto com carne): Útil para iniciantes. Limitante para quem quer profundidade.
- Harmonização regional (bacalhau português com tinto português): Válida. Mas não absoluta.
O que realmente importa é entender elementos:
No prato:
- Gordura
- Salinidade
- Acidez
- Intensidade de sabor
- Textura
No vinho:
- Acidez (corta gordura)
- Tanino (conflita com sal/queijo se for verde)
- Corpo (deve equilibrar com o prato)
- Álcool (pode quemar se o prato for delicado)
Quando você domina isso, para de decorar regras e começa a confiar na sua intuição.
Se antes de ousar você quiser entender como você se relaciona com o vinho hoje — mais tradicional, mais explorador, mais intuitivo —, o Quiz de Provador de Vinhos pode ser o primeiro passo. Ele revela seu perfil sensorial em poucos minutos.
[Fazer o Quiz de Provador de Vinhos]
Para quem quer ir além (e parar de decorar regras)
Se você se identificou com essa história — se também já sentiu aquela insegurança ao escolher vinho para uma ceia, ou já quis ousar mas teve medo de “errar” —, tenho dois convites:
E-BOOK: “Em Busca da Harmonização Perfeita”
Onde ensino:
- Os 5 elementos que você PRECISA entender (não é cor, não é regionalidade)
- Por que tanino + queijo/sal = conflito (e como resolver)
- Como harmonizar por textura, não por “regra de cor”
- Casos práticos: bacalhau, queijos, sobremesas, pratos brasileiros
É o método que usei para parar de depender de sommeliers e começar a confiar no meu paladar.
[Baixar o e-book “Em Busca da Harmonização Perfeita”]
PROGRAMA: “O Código do Vinho”
Se você quer transformar sua relação com o vinho em 2026 — não só harmonização, mas presença, autonomia, linguagem própria —, a próxima turma abre em janeiro.
4 encontros. 4 códigos:
- SENTIR (degustação consciente)
- DECIDIR (escolher com coerência)
- CONECTAR (falar de vinho com naturalidade)
- RITUALIZAR (integrar vinho ao estilo de vida)
[Quero saber mais sobre o Código do Vinho]
Esse olhar para a harmonização — que começa dentro, antes de ir para a taça — é o coração do que aprofundo no livro “O Despertar do Vinho”.
Antes do brinde de Natal
Quando eu levantar a taça na ceia de 24 de dezembro, com toda minha família reunida pela primeira vez em Portugal, vou brindar a isso:
À tradição que nos ancora.
À ousadia que nos liberta.
E ao vinho que, quando escolhido com presença, transforma qualquer refeição em memória.
Se você está planejando sua ceia de Natal — seja em Portugal, no Brasil, ou em qualquer lugar do mundo —, meu convite é:
Escolha o vinho que faz sentido para VOCÊ. Não para a regra.
E se quiser aprender a fazer isso com confiança, os dois caminhos estão aí em cima.
Feliz Natal. Com presença. Com ousadia. Com a taça certa na mão.

